Pesquisar este blog

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Freud Explica


“O brasileiro não se cansa”. Já dizia um cunhado meu, sempre que tomávamos umas no bar lá da esquina. Hoje, vinte e tantos anos depois, posso atestar a veracidade incontestável de tal citação, que demonstra ser a mais contundente prova da sabedoria do velho compadre Clóvis.

Quando eu era rapaz verde, menino novo, risonho, cheio de sonhos, nunca cansava. De manhazinha acordava cedo, antes mesmo do galo, e corria logo pra praia, sem motivo nem razão, só mesmo pra sentir areia entrando no fundo da bermuda, pinicando na pele descascada. Minha mãe chiava sempre, mas não tinha jeito, ninguém impedia aquele menino franzino de catar seus búzios. Estivesse quente ou frio, fizesse chuva ou sol, minha presença na beira-mar era sempre garantida, sentado no próprio castelo inexpugnável de areia, que se desfazia quando qualquer marola fraca vinha.

Marola? Marola foi a crise financeira que derrubou as bolsas do mundo inteiro naquele ano de 2009, aquela mesma que desempregou milhares e refreou a economia das principais potências mundiais e dos países emergentes. Mas essa marola não atingiu o Brasil. Como? Muitos se perguntaram… Não se preocupe, Freud explica.

Assim como as ondas que iam e vinham do mar, os anos passaram, levando com eles memórias alegres, histórias de amor, choros, hinos e coros, cânticos de ginásio, tristes despedidas, serestas românticas, viagens, festas, luto, morte. Passei por muita coisa enquanto trilhava os caminhos desse Brasilzão, suei, corri atrás de emprego, batalhei, suei mais um pouco, corri mais ainda, mas nunca, nem por um momento sequer, passou pela minha cabeça a possibilidade de desistir, de jogar as coisas pro alto e viver um deus nos acuda. Sabe por quê? Eu nunca cansava. Jamais parava uma corrida para tomar fôlego, jamais procurava o abrigo de uma cadeira enquanto tomava fila, jamais queria uma cama de penas, jamais usava travesseiro de astronauta.

Como assim? Que isotônico me conferia tanta disposição, tanta vontade de vencer? Que alimentação me dava aquele ímpeto vencedor que tendia a sempre me lançar pra frente? Muitos perguntaram, poucos souberam a resposta. Não era comida, nem bebida, nem remédio caro que se vendia na farmácia. O que movia minhas pernas, franzinas e esqueléticas pernas de maratonista, ainda é objeto de estudo dos mais conceituados médicos mundo afora. Quando o melhor deles, a sumidade no assunto, insatisfeito pelo seu aparente insucesso em localizar o fruto de minha motivação, forçou-me uma resposta contra a parede, apenas respondi: “Não se preocupe doutor, não entendeu? Freud explica”.

Lá pelos trinta anos, quando meu corpo já não era mais um saco encardido de ossos remendados com pouca carne, refreei um pouco essa minha pressa toda. Eu e o povo brasileiro testemunhamos atônitos o escândalo Collor, as falsas investigações no senado, a falcatrua do parlamento, o impeachment, e ainda outras barbaridades comedidas pelos incorruptíveis políticos de nossa nação.

Foi aí, pela primeira vez em minha vida, que senti os tendões fraquejarem, os ligamentos falharem, e as pernas enfraquecerem. Fiquei atônito, desnorteado. Isso nunca havia me acontecido antes, mas por sorte, quando Itamar assumiu e o Real foi lançado, senti-me melhor. “Era só câimbra.” falou o médico, primo do cunhado de um amigo meu. “das fortes!”, fez questão de enfatizar, com um sorriso amarelo que entregava sua completa falta de higiene.

Mesmo assim resolvi me prevenir, e daquele dia em diante passei a correr duas vezes mais, a me desafiar a cada novo percurso realizado. No fim de um ano já me sentia bem melhor, muito mais saudável, implacável, imbatível, como nos tempos de juventude. Passou-se o tempo, nove invernos e dez verões, até que o desastre ocorreu.

O monstro do mensalão se abateu sobre minhas canelas com uma fúria arrebatadora. A briga foi feia, terrível, e sofri muito para enxotar para longe aquela besta terrível. Quando por fim me vi livre, corri ao hospital. Novamente aquele mesmo médico seboso, com sua amarela arcada dentária, foi o sujeito a me receber. “Problema? Que nada! Foi apenas uma torção.” Disse ele, sempre exibindo aquele antro mal cheiroso de larvas e cáries, desta vez com um pequeno alface para coroar a cereja do bolo. Uma atadura, pirolito de brinde e fui mandado para casa de novo, igualmente inteiro. Pensava eu que não enfrentaria mais nenhuma fera animalesca a tentar devorar minhas benditas pernas. Ledo engano. O mal trabalha sempre contra as forças vencedores que ainda estão nesse país. O mal? Quem seria esse mal? Quem teria essa força? Você talvez esteja se perguntando. Não se preocupe, Freud explica.

Quando cheguei em meu humilde templo, quem me esperava na sacada era Clóvis. Sim, meu velho cunhado dos tempos de outrora. Desta vez um senhor de quarenta, assim como meu. Queria apenas um ombro amigo para afogar as mágoas, e como nunca fui de negar nada ao homem, nem seria diferente naquela vez, parti das escadas mesmo ao bar mais próximo.

Tomamos poucas e boas, falamos de minha ex-mulher, da ex-mulher dele, das muitas andanças, malditas lambanças, mas também discutimos cinema, arte nouveau e música clássica, psicologia, futebol, melodia, samba, televisão, rádio, e por fim, política. Ele, sempre cordial e saudosista, recitou novamente aquela sua imortal citação, que ficará para sempre em minha memória. “O brasileiro não se cansa”. Falou-a justo à mim, o maior dos incansáveis, e eu apenas concordei com a cabeça, como tinha de ser feito. Depois discutimos sobre os monstros mitológicos que já enfrentamos juntos, eu, ele, e todo o povo desse país. O fantasma da inflação, as sombras invisíveis de Brasília, os terríveis sanguessugas do plenário, e muitos, muitos outros seres que tornariam o folclore brasileiro o mais rico e elaborado do mundo.

Questionei-me sobre os outros desafios que o Brasil ainda iria enfrentar. As outras pedras no caminho, as outras bestas que tentariam arrancar algo de minhas batatas, um pedaço sequer. Mas não desanimei, não me entristeci, por que sei que o povo brasileiro é forte, que sou forte. Sei que o brasileiro nunca se cansa, não se cansa de correr, não se cansa de apanhar, não se cansa de perder, não se cansa de ganhar, não se cansa, como não se cansa.

Por quê? Você perguntaria. Não se corra atrás da resposta amigo, você pode se cansar. Seja você brasileiro, gringo, imigrante ou estrangeiro, Freud explica.


Escritor: Hamilton Saraiva

http://www.onerdescritor.com.br/2011/05/freud-explica/

Nenhum comentário:

Postar um comentário